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“Não se nos exige que desafiemos as autoridades. Nossas palavras, quer faladas quer escritas, devem ser cuidadosamente consideradas, para que não sejamos tidos na conta de proferir coisas que nos façam parecer contrários à lei e à ordem. Não devemos dizer nem fazer coisa alguma que nos venha desnecessariamente impedir o caminho. Temos de avançar em nome de Cristo, defendendo as verdades que nos foram confiadas. Se somos proibidos pelos homens de fazer essa obra, podemos então dizer como os apóstolos: "Julgai vós se é justo, diante de Deus, ouvir-vos antes a vós do que a Deus; porque não podemos deixar de falar do que temos visto e ouvido." Atos 4:19 e 20.
Atos dos Apóstolos, págs. 68 e 69. OE – Pag. 390.
Recentemente fui perguntado a respeito da minha posição em relação aos acontecimentos políticos. Achei difícil de explicá-la em poucas palavras. Em muitas, talvez fique um pouco menos difícil, embora não muito.
Desse modo, procurarei aqui descrever uma espécie de modelo de análise de posicionamento político à luz do que compreendo ser um adventismo pioneiro e do Grande Conflito. É o modelo que tento rodar na minha mente sempre que me defronto com situações políticas diante das quais preciso me posicionar. Embora não seja definitivo, acredito ser amplo o suficiente para ajudar quem deseja algum auxílio nesse sentido. Esse guia não é simplesmente um guia de como ou em quem votar. Trata-se de como compreender e se posicionar politicamente, em termos espirituais e intelectuais, entendendo quem somos, qual é nossa missão e em que circunstâncias estamos em melhores condições de executá-la.
Primeiro de tudo, o que escreverei adiante parte de algumas premissas fundamentais. Como adventistas, queremos as condições mais favoráveis para o cumprimento da nossa missão, quais sejam:
1 – Total liberdade religiosa e de consciência;
2 – Circunstâncias propícias à santificação;
3 – Meios materiais gerais para utilizarmos em nossa obra;
De fato, entendo que isso é o que deveríamos e temos amplo respaldo para pedir dos poderes instituídos, levando em conta tanto a lei dos homens quanto a de Deus. Dentro do que está ao nosso alcance, considerando os limites de nossa participação e envolvimento na política, podemos e devemos advogar por estes três pontos.
1 – Por que pedir total liberdade religiosa e de consciência, como entender esse tema dentro do espectro político e como fugir de armadilhas?
A total liberdade religiosa e de consciência, tal como descreve o Grande Conflito, é um projeto que partiu de Deus. É uma premissa para um universo feliz. A liberdade, como um todo, vem do coração de Deus, mas a mais genuína das liberdades é a de consciência. Todo o relato do Grande Conflito, desde a queda de Lúcifer até a formação de um povo santo, é uma solene mensagem que Deus dá à Sua criação: “faço muita questão de um Universo livre”. Deus permitiu à Satanás expressar seu descontentamento e seus projetos antagônicos ao modelo celestial. Deus tem lutado por séculos e séculos para demonstrar as vantagens de Seu governo, sem impô-los. Satanás, por sua vez, procura arrebanhar súditos por meio da escravização no pecado, pois quem peca nada mais pode fazer além de pecar. É o caminho dos vícios de todos os tipos que tiram do ser humano sua liberdade de consciência e o impedem de exercê-la.
O ser humano já está suficientemente tolhido de sua liberdade religiosa e de consciência quando está em pecado, mas quando poderes políticos jogam sobre as pessoas cargas ainda maiores de escravidão, a tarefa de levar o evangelho se torna surreal. Sob esse ponto de vista, o melhor governo é o que reproduz exatamente a atitude de Deus para com Satanás no Grande Conflito: plena liberdade para advogar por qualquer causa, expressar sua adesão à ela e total liberdade para expressar seus motivos. Não é a lei positiva, a imposição arbitrária e a presunção de poder que curam as chagas, mas sim os fatos, a lei natural, a reflexão e o arrependimento voluntário. Que ninguém fique ansioso de que a liberdade inevitavelmente leve ao caos. Há um Deus no céu ansioso por mostrar as vantagens de amar, de compreender, de respeitar, de tolerar e de ajudar. Nenhum governo humano deveria tomar para si o trabalho do próprio Espírito Santo, que procura dia e noite conduzir o ser humano ao caminho do bem. O papel de um governo humano não é o de moralizar, mas o de dar condições mínimas para que o indivíduo escute por si mesmo a voz do Espírito Santo. É completamente desnecessário demonstrar aqui a ineficácia de qualquer política pública de caráter punitivo e violento. Os países com leis mais estritas e punições mais severas em geral são os mais violentos. O ser humano tem seu próprio tempo para entender o certo e o errado e nenhum poder humano coercitivo pode alterar essa trajetória, mas, por outro lado, esse processo moral pode ser facilitado se o Estado ou qualquer outra entidade dotada de poder não despejar sobre o indivíduo traumas adicionais.
Aqui podemos já fazer uma análise em relação a posicionamento político: não desejamos nenhum poder humano que imponha condutas morais por coerção. Mas alguém poderá dizer: porque então os países europeus têm tanta liberdade e tão poucos cristãos? Primeiramente, é importante frisar que a grande maioria da sociedade ocidental não possui tanta liberdade quanto se alardeia. Pergunto: alguém que é viciado em pornografia ou em redes sociais, que precisa checar seu twitter a cada 15 minutos, é um indivíduo com liberdade de consciência? Que ninguém tenha a ousadia de rejeitar como teoria da conspiração o fato de que muita gente está atualmente em prisões de visão de mundo que os algoritmos de computadores criaram. A internet, em vez de estimular a reflexão e mudança de opinião, antes tem funcionado como um afunilador de ideias. O indivíduo é lançado em uma espiral de alimentação de si mesmo até o ponto em que já não pode dialogar com outro indivíduo.
Um ponto crucial aqui é que não devemos nos preocupar APENAS com aquele indivíduo que poderá cercear liberdade por meio do Estado. As liberdades de consciência podem ser tolhidas de infinitas formas, que os cristãos conservadores, até muito bem-intencionados, não conseguem enxergar. O indivíduo pode cercear liberdades apoderando-se do poder estatal e consecutivamente anulando-o. No mundo ocidental, isso é mais comum do que parece. Não é raro encontrar casos em que sociedades lúcidas já entenderam que algo é escravizador demais para ser tolerado e aprovaram leis para evitar o retorno desse mal. Alguém ousará dizer que a proibição das propagandas de cigarros, por exemplo, foi um passo equivocado? As pessoas continuam podendo fumar, mas ninguém que está tentando parar de fumar vai esbarrar em um outdoor apresentando o cigarro como algo libertador… Bom, e o que impede que alguém procure o poder político com o propósito de afrouxar essa mesma lei? Nós adventistas somos ingênuos o suficiente para duvidar de que na política tudo é possível? De fato, no mundo ocidental, a manutenção e mesmo a ampliação da liberdade de consciência depende muito mais de que as EMPRESAS e não o GOVERNO sejam barradas em seu acúmulo de poder. O autoritarismo e a escravização nem sempre precisam vir de um governo oficialmente instituído como tal. O mundo ocidental pós-moderno escancara isso de um modo até assustador.
Mas nesse ponto eu posso ir muito além… O que pensar de um político que defenda, ou mesmo não se oponha, ao direito das grandes corporações, especialmente de mídias sociais, de desenvolver seus códigos de modo a acentuar ainda mais a necessidade das pessoas de passarem mais e mais tempo rolando barras no smartphone? O que pensar de um político que defenda o direito de empresas de forçarem seus funcionários a aderir à sua cultura corporativa como se fosse uma religião? Alguém já tentou alguma vez imaginar se nossos jovens adventistas nas grandes cidades de fato possuem alguma liberdade de consciência? Eu acho bastante interessante a acusação de que é essencialmente na universidade que o jovem adventista encontra cerceamento da liberdade religiosa. Crê-se que liberdade religiosa é essencialmente a possibilidade de guardar o Sábado, o que é uma simplificação bastante incorreta. Até nesse caso, eu posso dizer sem qualquer receio (tendo até vívido isso na pele), que você encontra mais tolerância quanto à guarda do Sábado nas universidades do que nas empresas (e quem me conhece sabe o quanto com maus olhos eu vejo as universidades).
Em relação à essa questão, um primeiro ponto é que as universidades são completamente opcionais, enquanto trabalhar não é. Qualquer indivíduo que está sendo “perseguido” em uma universidade pode simplesmente levantar da carteira, sair e nunca mais voltar para QUALQUER OUTRA UNIVERSIDADE, ao passo que quem tem um emprego só poderá fazer isso se tiver uma outra empresa para contratá-lo depois. É completamente desproporcional comparar empresas com universidades… E agora vamos ao jovem adventista em uma empresa: é permitido a ele ausentar-se do seu posto de trabalho para orar se de repente uma tentação o surpreende? É permitido a ele trabalhar em um ritmo natural, compatível com o corpo humano? É permitido a ele opor-se a situações antiéticas sem passar pelo risco de se ver sem trabalho? O que se diz a ele na igreja é apenas: “seja forte, seja um cristão”. Costuma-se pedir dele que seja um Daniel na Babilônia e é justamente nesse ponto que eu queria chegar: nossa consciência deveria nos conduzir a votar no Rei Dario (para quem não entendeu, o Rei Dario foi quem promulgou a lei para o retorno do povo hebreu para sua terra).
Em muitos casos, temos antes votado em políticos que pretendem derrubar a lei que viabiliza o retorno do povo à Jerusalém. Se fui muito metafórico, esclareço: tudo o que prende o jovem adventista à grande cidade, à completa necessidade de trabalhar para alguém que não teme a Deus, inclusive por um salário que jamais o habilitará a se mudar para o campo, deveríamos rechaçar como redutor da liberdade de consciência. Isso, viver afundado no dia a dia de uma grande cidade, não deveria ser retratado como oportunidade de evangelismo, mas antes como suicídio. A liberdade de consciência do povo de Deus envolve viver próximo à natureza, dependendo de seus próprios braços e decisões e da misericórdia de Deus. Esse é o povo que avançará para as grandes cidades para evangelizar de verdade e não para ser trucidado violentamente por Satanás, como tem acontecido.
A liberdade de consciência pode ser avaliada da seguinte forma dentro dos espectros políticos:
● Extrema-direita conservadora cristã: é o retrato de Apocalipse 13. Apropriar-se-á do Estado para estabelecer o domingo. Envolve tanto os protestantes quanto os católicos (de fato, quem puxa a intolerância é o protestantismo). É quem vai matar o povo de Deus, propriamente falando.
● Extrema direita nacionalista: substitui a liberdade de consciência pelo culto à nação. Manda jovens para a guerra para morrer a troco de nada e cria barreiras artificiais entre os países, de modo a dificultar a pregação do evangelho. A própria Irmã Ellen G. White alertou sobremaneira esse perigo, às vésperas da I guerra mundial…
● Extrema direita anarco-capitalista: escraviza por meio do poder ilimitado das empresas.
Direita laica moderada e centro: permite liberdade religiosa oficialmente, mas indiretamente entrega poder desproporcional às empresas ou mesmo a tudo que não é governo. Incapaz de atender a demandas sociais urgentes, costuma resultar em governos instáveis, cuja inoperância frequentemente dá lugar a ondas de extremismo.
● Esquerda moderada: procura restabelecer um equilíbrio de forças entre setores da sociedade, sempre flertando com o abandono do laicismo, apesar de apoiar oficialmente a liberdade religiosa. Procura apropriar-se da autoridade de dizer o que é científico, com possíveis consequências para cerceamento de liberdade de consciência. No tempo do fim, a meu ver, dará uma guinada ao centro para tentar ser poupada pela extrema-direita cristã conservadora.
● Extrema esquerda: marxista, abandona o laicismo a favor do ateísmo de Estado. A religião é condenada e o indivíduo perde completamente a liberdade de consciência. A representatividade política hoje é insignificante, comparada aos outros espectros políticos, especialmente a extrema-direita, que é muito popular.
Votar bem, e se posicionar politicamente de um modo geral, é um exercício de avaliar em que pé dessa confusão estamos, de modo a preservar a liberdade religiosa. Como tudo é ruim, a regra é estudar e escolher o menos pior entre as opções centrais, fugindo de tudo que pode levar aos extremos. A liberdade religiosa e de consciência é simplesmente impossível nos extremos, ao que passo que precisa ser gerenciada no meio. Entendam: hoje eu estou alertando que estamos nos encaminhando mais para poder arbitrário nas empresas que no Estado, mas isso eu digo porque é relevante e está ocorrendo hoje. Amanhã eu poderei alertar que estamos indo em uma direção perigosa no totalitarismo do Estado.
A liberdade de consciência é uma questão importante para o posicionamento adventista em relação à política, considerando nosso entendimento de que só se pode chegar à verdade por meio do uso da razão e exercendo liberdade. As leis positivas, do Estado, devem considerar apenas aquilo que é terreno comum da convivência humana e precisamos estar atentos a tudo o que possa ser um impedimento para se chegar a verdades mais profundas por meio da razão, da reflexão e mesmo da ciência. Vale lembrar ainda que, uma vez que defendamos a liberdade de consciência para nós mesmos, não podemos negar essa mesma liberdade a outros, por mais penoso que isso nos seja.
2 – Por que defender que sejam oferecidas circunstâncias propícias à santificação?
A resolução do Grande Conflito se dá quando surge um povo santo e o meio em que se vive colabora substancialmente para o modo de vida do indivíduo. Os adventistas que moram nas grandes cidades possuem dificuldades muito maiores que aqueles que vivem fora delas, especialmente por conta da imoralidade.
Essa imoralidade certamente dificulta os trabalhos evangelísticos e portanto a formação de um povo santo, mas há diversas formas por meio das quais ela pode ser chancelada pela política. Todos os espectros políticos contribuem para a imoralidade, mas cada qual tem suas peculiaridades que precisam sem compreendidas. Os movimentos políticos de esquerda, em geral, não veem grandes problemas na imoralidade sexual e os movimentos de direita têm consistentemente defendido a total liberdade no meio cibernético, o que é o mesmo que aprovar a imoralidade que ali prevalece.
Um desafio considerável para o cristão é sustentar uma posição coerente que ao mesmo tempo defenda leis que desincentivem todas as formas de vícios e valorizem a liberdade de consciência. Entendamos: a lei positiva não deve se sobrepor à consciência do indivíduo. Ele deve chegar por si mesmo a um entendimento de que o mal é mal. O apelo a políticas moralizadoras em geral carrega consigo o perigo da ditadura. Qualquer pequeno excesso em uma política moralizadora pode significar o fim da liberdade religiosa. Temos o aviso profético de que a derradeira perseguição aos cristãos virá do conservadorismo político-religioso, sedento por moralidade. Leis muito frouxas, por sua vez, podem levar o indivíduo à degeneração, diante da qual pouco espaço existirá para o desenvolvimento de uma consciência livre. Se existe um abandono muito forte da ordem, circunstâncias muito desfavoráveis podem surgir.
Isso não é desanimador. É apenas um aviso de que o mundo é complexo e exige de nós uma compreensão clara a respeito dos nossos tempos. Dois grandes momentos políticos tomaram lugar no tempo dos nossos pioneiros: a lei dominical e a lei seca. Veja: ambas leis tinham um cunho moralizador. De tal modo a lei dominical envolvia os adventistas ao final do século XIX, que temos o relato de um importante líder adventista apresentando ao congresso americano os motivos pelos quais a lei não deveria passar. Essa contribuição adventista foi inclusive decisiva para o descarte do projeto de lei. A lei seca, por sua vez, foi defendida por Ellen G. White, de uma forma até não usual, dado o afastamento que ela mantinha desses assuntos. O principal argumento que ela apresentou era justamente o que eu repeti aqui: a lei seca ajudaria o trabalho de ganhar almas, o que é incontestável.
Fica evidente, portanto, que cada caso é um caso. Existe um patamar de autodestruição social a partir do qual alguma ação se faz necessária, tanto para a manutenção dos interesses da sociedade quanto para o do povo de Deus. Não raro, esses interesses coincidem: é para o maior interesse da sociedade que filhos sejam bem-criados por pais cuidadosos e conscientes. Ninguém poderá alegar, mesmo para um juiz corrupto, que criar bem seus filhos é algo contrário à sua liberdade de consciência. A lei seca tinham razão de ser, tanto para nós quanto para a coletividade.
O terreno da política é cheio de enganos. Cabe a nós enxergá-lo com lucidez e nos posicionarmos com inteligência e perspicácia, a fim de que obtenhamos as melhores condições para a realização de nossos trabalhos. Quando nos são oferecidas leis ou prioridades políticas vantajosas, devemos nos posicionar a favor delas e tirarmos dali todo proveito que pudermos tirar, em termos de ganhos para o reino de Deus, mas não podemos nos precipitar em armadilhas que, disfarçadas de moralidade, carregam consigo a semente ou mesmo a árvore inteira da intolerância religiosa. Do mesmo modo, devemos estar conscientes das consequências de propostas políticas que tendem a moralizar um aspecto da sociedade e afrouxar severamente a moral em outro. Devemos sempre estar atentos ao todo.
As circunstâncias propícias à santificação podem ser avaliadas da seguinte forma dentro dos espectros políticos:
● Extrema-direita conservadora cristã: extremamente moralizadora e favoráveis a leis mais rígidas. Desejam o fim da liberdade religiosa e usam meios violentos para atingi-lo;
● Extrema direita nacionalista: igual à direita conservadora cristã;
Extrema direita anarco-capitalista: é completamente indiferente a noções de moralidade no âmbito social, exceto em relação à propriedade privada. Entretanto, ao propor a entrega de poder ilimitado às empresas, defende que no âmbito do trabalho as regras de moralidade sejam unicamente definidas pelo empregador. O resultado para os jovens cristãos sinceros é catastrófico.
● Direita laica moderada e centro: defende um processo civilizatório geral e não religioso. Pondera entre a ordem e o excesso da liberdade. Geralmente entrega considerável poder para empregadores ditarem noções de moralidade.
● Esquerda moderada: defende um processo civilizatório geral e não religioso, mas geralmente tende a uma maior conivência com a imoralidade.
●Extrema esquerda: na sua variante tradicional (stalinista), as noções de moralidade são extremamente rígidas e arbitrárias e a religião é abolida. Não há respeito à liberdade de consciência. Na variante anárquica, há liberdade de consciência e a moralidade é estabelecida pelos valores compartilhados pelos indivíduos que livremente se agrupam. Pode haver muita instabilidade.
3 – Por que defendermos que existam meios materiais gerais para utilizarmos em nossa obra?
Creio ser uma visão muito inocente a de que a miséria e a pobreza são excelente porta de entrada para o evangelho. Uma sociedade lançada na miséria é presa fácil de um conservadorismo religioso que não preza pela livre consciência do indivíduo. Quanto mais miserável a sociedade, maior a dificuldade para evangelização. As pessoas buscam primeiramente saciar suas necessidades mais básicas (como a própria Bíblia demonstra) e apenas após isso estão em condições de pensar em outras questões. É justo que seja assim… Portanto, quando os poderes instituídos resolvem questões básicas, é um trabalho a menos para o já sobrecarregado missionário.
Também é fato que, em geral quando uma sociedade é pobre, pobre também será o missionário que ali trabalha e poucos recursos terá à sua disposição nessa tarefa. Considerando ainda que os recursos evangelísticos tendem a ficar represados nos lugares ricos, é realmente um enorme ganho quando poderes seculares assumem a tarefa de desenvolver economicamente e socialmente um lugar pobre. É um trabalho a menos para o missionário, pois é evidente que se o poder instituído não fizer, o missionário terá que fazer. Não há muita margem para desenvolvimento espiritual onde rotineiramente se morre de esquistossomose. O desenvolvimento econômico e social é vantajoso para o povo de Deus.
Esse fato pode ser demonstrado pela observação. Embora haja exceções, como regra geral podemos constatar que países com renda mais elevada tendem a estar em um estágio mais elevado de disseminação do evangelho. Isso se dá desse modo porque, com rendas mais elevadas, mais recursos podem ser destinados à propagação de informações e mais pessoas podem ser separadas para o trabalho evangelístico em tempo parcial ou integral. Em países ricos, em geral, a rejeição ou distanciamento do evangelho tende a se dar muito mais por conta de uma escolha pessoal que por uma causa externa ao indivíduo, mas um indivíduo que goza de situação material confortável e diz não ao evangelho é seguramente um caso bem resolvido para o missionário: trata-se de alguém que já está evangelizado e um nome a menos em sua lista. Por sua vez, um indivíduo que ainda não vê atendidas suas necessidades mais básicas, não por falta de laboriosidade mas por restrições em seu meio social, seguramente não poderá ser riscado da lista do missionário, pois suas preocupações mais imediatas precisam ser atendidas antes que se diga que sua rejeição ao evangelho é de fato uma escolha consciente.
As circunstâncias referentes à disponibilidade de meios materiais gerais podem ser consideradas da seguinte forma dentro dos espectros políticos:
● Extrema-direita conservadora cristã: na variante que preza por liberdade econômica, não há projetos de desenvolvimento nacionais. Na variante com projetos econômicos nacionais, pode haver crescimento econômico maior, especialmente em lugares pouco desenvolvidos. Em ambos os casos, a população mais pobre tende a usufruir muito pouco do incremento de renda nacional, quando há. A abundância de materiais para uso evangelístico dependerá da boa vontade dos ricos.
● Extrema direita nacionalista: semelhante ao espectro político anterior.
● Extrema direita anarco-capitalista: o poder político das classes ricas é o mais alto possível. A abundância de materiais para evangelismo dependerá delas, mas o próprio crescimento econômico poderá ser prejudicado por conta de estrangulamentos na renda das classes médias e baixas.
● Direita laica moderada e centro: um misto de liberdade econômica com regulamentação e mínima interferência do Estado na economia. Em lugares com dinâmica econômica já bem estabelecida, pode haver crescimento econômico e uma renda melhor distribuída, contribuindo para a abundância geral da sociedade e portanto pouca dependência das classes ricas. Em lugares em que não há uma dinâmica econômica bem estabelecida, a estagnação econômica geralmente é o caso, por conta dos poucos incentivos para investimento.
● Esquerda moderada: na versão com um robusto capitalismo de Estado, o crescimento pode ser significativo. Uma distribuição da renda de forma vantajosa pode ou não ocorrer, a depender das políticas adotadas. Na versão com capitalismo de Estado mal dirigido, os maus investimentos podem gerar estagnação econômica.
●Extrema esquerda: na sua variante tradicional (stalinista), os meios de produção são de propriedade comum e a economia é totalmente planejada. Poderá ou não haver crescimento econômico, a depender de uma série de fatores, e a distribuição da renda poderá ser bastante arbitrária. Na variante anárquica, a economia não é planejada por um ente central e as decisões econômicas são tomadas por conselhos. Embora sejam raros os casos na história, o crescimento e o desenvolvimento econômicos podem ser significativos e a distribuição da renda tende a ser grande. A continuidade do crescimento e do desenvolvimento dependerá muito da estabilidade política.
Conciliando as três dimensões
A liberdade religiosa, condições favoráveis ao avanço moral e disponibilidade de meios materiais são circunstâncias muito vantajosas para o avanço evangelístico e o ideal seria que, em cada localidade, tivéssemos uma combinação das três circunstâncias em níveis elevados, mas nem sempre é possível conciliar o máximo de liberdade religiosa, condições para santificação e abundância econômica. Geralmente, algo precisa ser sacrificado a fim de se chegar a um nível geral razoável.
Trata-se de uma escolha difícil e uma posição política bem informada é sempre muito valiosa. O primeiro caso mais difícil envolve a conciliação entre a liberdade religiosa e as circunstâncias favoráveis à santificação, porque um Estado laico sempre precisará tolerar a liberdade dos perversos e desse modo normalizar a perversidade. Quando essa tolerância cessa, em nome de um ideal moralizador, a liberdade religiosa sofre danos. Sabemos bem, conforme a profecia nos adverte, que o fim da liberdade religiosa virá do cristianismo conservador. Apoiá-lo representa grande risco. Os pioneiros adventistas se posicionaram contra o conservadorismo político-religioso ao se colocar contra a lei dominical.
Entretanto, quando a disseminação de vícios se encaminha para uma situação descontrolada, legislar pode se tornar necessário. Essa posição também é coerente com a adotada pelos pioneiros adventistas, quando apoiaram a lei seca americana no início do século XX. Essa tensão precisa ser considerada na sua complexidade, com inteligência, sem a adoção de caminhos fáceis.
Uma outra tensão importante envolve a conciliação entre princípios nacionais moralizadores e abundância de recursos. Não raro, o funcionamento acelerado da economia envolverá alguma dose de imoralidade, pois, em qualquer época e lugar, as atividades econômicas do homem em geral não são éticas, embora sejam toleradas pela lei. Muitas vezes, um aprofundamento muito agudo de leis moralizadoras poderá contrair severamente a economia, com consequências sérias para as classes mais pobres e dificuldades adicionais para o trabalho evangelístico.
Felizmente, não há tensão significativa ao se defender simultaneamente a liberdade de consciência e a abundância de recursos, pois um e outro costumam andar juntos, quando não há abuso da liberdade. Em geral, onde a liberdade de consciência é realmente valorizada por si mesma, e não uma justificativa para excessos, a abundância tende a vir naturalmente.
De todo modo, dificilmente encontraremos uma proposta política que leve a sério e maximize simultaneamente as três dimensões, de modo que precisamos pensar com cuidado e avaliar como contribuir para o melhor cenário possível, sem entretanto perdermos tempo demais com política.
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